quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

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Prostrado num chão cheio de sal,
Olhando essa casa lá ao longe
Erguida mesmo muito rente ao abismo,
Sei que estou só e, simplesmente, não sei estar só.
Por isso cismo em ver-te chegar de lá;
Dessa casa poisada no abismo.

Apoiada numa vara pouco torta
(Mas que direita, em rigor, também não é),
Vens-te chegando um pé ante outro pé
(Apenas porque não há modo de andar
Que esse não seja).
E enquanto o mar revolto me arrefece e beija,
Vejo-te chegar de lá por sobre o ar
Dessa casa poisada no abismo;
Esse sim, em rigor, por endireitar.

Vês-me sofrer, vens-me sofrer,
Talvez matar…
De um amor que é como o sal debaixo dos joelhos,
Que é como a areia que me erode os trapos velhos
E que se acumula nas minhas miudezas,
Nas minhas ideias de casas de princesas,
Nas minhas marés que me racham toda a face.
Serei eu pedra ou talvez o túmulo onde passe
O navegador que venha dobrar o meu assombro…
Ou local que marque o sítio onde, sobre o ombro,
A tua casa assenta no meu olhar abismado e, sempre rente,
Só não cai porque eu estou cá constantemente…

Certamente batido por outras ondas de água igual…
Lembro-me de todas elas e do ritual que repetiram
Até que o tapete rochoso que cruamente repeliram
Fosse o ar que faz sentido nesse abismo que é tua casa.

Fecha-me os olhos para que te possas partir;
Que o meu tempo atrasa o teu tempo de morrer.
Vamos atrasados para onde temos de ir.
E, faltando o chão, havemos de voar
Ou de cair
Entre bocados segurados com o olhar.


Rafael Cardoso Oliveira

quinta-feira, 4 de agosto de 2016

Ode das Sombras


Dobrada comendo a luz
De um prato negro na mesa escura,
Esquecida lembrando a cruz
Que ao peito lhe prende a loucura
De comer luz empacotada,
E de a ver empurrada pelos mesmo goles
Tomados todos de uma assentada
De vinho verde branco gaseificado
Comprado em promoção
Num supermercado.

Dobrado contando os nós
Que a vida dá num caixão alheio,
Esquecido lembrando a voz
Do homem que lhe deixou no correio
A carta de guerra ensopada em sal,
Que era mar e não água chorada,
Cansado de empacotar Portugal
Para a mesma jornada.

Dobrados contando as contas
Do terço que rezaram juntos,
Esquecidos olhando as montras
E o espectáculo dos outros defuntos,
Gemendo e chorando plangentes
Como facas arranhando lousa fria,
Rangem, em bruxismo, os dentes
Até lhos romper o dia.


Rafael Cardoso Oliveira

quarta-feira, 20 de julho de 2016

Santo Suicidáro


Tem pena de mim.
Abraça-me com os teus olhos bravos e, por favor,
Entre os alarves, os cónegos, os bichos e os profetas,
Tem pena de mim.
Ama-me com as mãos abertas que escreveram palavras erradas.
Com as mesmas mãos sujas e agora despegadas do peito
Onde guardavas e guardas, numa prisão sem guardas,
O teu gélido conceito de amor.
Tem pena de mim, por favor.

Tem-me pena por não ter sido mais nem menos
Do que o ter repetido os ditames que me foram ditados,
Os ditongos ensaiados até à loucura e ao amor e à exaustão,
Os perdões multiplicados e os pães divididos por filhos esfaimados
Como cães que, em verdade, parece que são.
Parece que somos assim.
Acontece-nos o sermos assim.
Aconteceu-nos o fim do mundo e, sem darmos conta,
Servimo-nos da luz destas labaredas infernais
Por medo absurdo da treva.
Andamos loucos guiando cegos e cegos cegando loucos,
Ungindo cruzes na testa e estrelas no coração dos olhos.
E somos sempre poucos.
E estamos sempre roucos.
E a nossa voz é sempre certa.

Tem pena de mim cujo corpo não importa,
E que se atira para esta porta aberta do abismo
Enfrentando o chão com tal maquinal maniqueísmo
Que é a ilusão de escolher o fim que me conforta.
Bate-me tu essa porta na cara, se achares por bem,
Mas vê se, entre o meu não crer e o teu amém,
Não serei eu que quero estar do meu lado de fora.

Agora salto por ti também.
Só(,) agora.


Rafael Cardoso Oliveira

terça-feira, 5 de julho de 2016

Pathos

Ao viajante.


Pathos

Se te estender uma mão mas te ocultar o coração
Que sentirás?
Terás da ajuda que te dão o que procuras?
Procurarás a emoção para a encontrar racionada,
Racionalizada, raciocinada e empacotada
Junto de tantos outros males
E de outras curas?

Há mal em perder caminho e aventuras?
Há mal em ter caminho e arrepiá-lo?
Mal maior será ter tempo sem ter tempo
Para dá-lo sofregamente a quem padece,
A quem sofre de menos tempo que este tempo
E da menor benesse
De um céu qualquer
Ou do inferno fulgurante que amanhece.

Acontece-me esquecer que tenho duas mãos para dar.
E perco tanto, tanto tempo em juras e remorsos
Que só me escondem o coração, e os meus ossos
Fazem brilhar como se não fossem os teus ossos também.
Perco mais tempo a deixar ir aquém e além quem não sabe andar,
A masturbar o intelecto ou o objecto dos dias em que, cego,
Me nego a perceber e a aceitar que sou eu que consumo
Estas curas de que nem Maquiavel nu se lembraria.
E talvez pie - talvez não pie – uma piedosa cotovia
Que, cruel, debique, qual águia-real descendo a pique,
As mãos e o coração que pus nos bolsos, neste dia.

E por si pia.

Rafael Cardoso Oliveira



quarta-feira, 29 de junho de 2016

Acordemos

Acordemos

Hoje acordamos com a dura sensação
De que deveríamos ter acordado mais cedo.
Olhamos o espelho do lado errado e o dia todo trocado
Que não parece ser de sol mas que de chuva não é.
Pomos um pé fora da cama e um telemóvel na mão.
Acendemos a paciência e ignoramos a razão
E ligamos a nossa rede social.
Porque é normal
Haver rede social em solidão.

Acordamos com os olhos fechados, que fechados mantemos,
Ante as fachadas do que vemos e que é melhor não ver.
Concordamos, todos os dias, tacitamente
Em acordar com a nossa gente, não só à mesma hora,
Mas à luz da mesma aurora.
Ao som do mesmo tiro plangente
E tomando exactamente do mesmo pão;
Ou uma malga de vinho que nos esqueça de nós;
Ou um bom copo de aguardente
Para lembrar, não mais que esquecidamente,
Os egrégios avós;
Ou um sermão dominical administrado pela televisão,
Entre duas músicas e uma promoção
De como viver até aos cem
Sem dar por isso;
Ou o aval de alguém, que ninguém é,
Num qualquer local da tal rede social.

Entorpeçam-nos, por favor, rapidamente
Que isto assim não parece Portugal.

Hoje, acordamos com o mesmo compromisso
De manter a cabeça firme na sua posição torta.
De calcetar as ruas sujas, não fazer rebuliço e abrir a porta
À indigência e a ignomínia como irmãs.
E hão-de sentar-se à nossa mesa e comer a nossa carne,
Usar das nossas flores e inventar as nossas cores
Cantar a nossa terra mas mudar-lhe o seu sentido,
Até que o nosso ouvido ache que aquela é a nossa terra.
E, por obrigação imoral de uma Nossa Senhora qualquer,
Devemos, como qualquer homem e qualquer mulher,
Fazer cara serena e dizer que a vida passa bem.
Acordar que “vamos andando”, que sem andar não vai ninguém,
Apesar de não irmos a lado nenhum.
A noite chega e é só hora de dormir, e só nisso acordamos todos.
E desse sono não acorda ninguém,
Nem um.



Procurando-nos entre mil e um engodos, acordamos que tem de ser.
Acordamos que estamos dormindo e que assim já não pode ser.
Vemos que somos mentidos e que nos usam - o que não tem de ser.
Vemos que nos abusam quando estamos calados só para comer
As migalhas do pão de fome que nem o diabo quis amassar
Porque nos importa muito mais acordar do que acordar.
Porque desesperamos por despertar
Mas nos deixamos dormir e ir porque é bom ir e dormir.

Pisam a nossa língua e a vontade de a falar,
Engasgam a nossa escrita e escrevem o poema novo
Com o sangue do mesmo povo que se viu navegar
No mar que tantas vezes se encheu de lágrimas e de nós.
Tantas lutas caladas e tantas querelas sem voz,
Tantos dias iguais e tanta fonte espectral
Jorrando a mesma água parada de morte,
Enquanto, num canto, se canta à sorte:

Entorpeçam-nos, por favor, rapidamente
Que isto assim não parece Portugal.

Doente.
Dormente.
Sem mote.


Rafael Cardoso Oliveira

sexta-feira, 10 de junho de 2016

Dia de Portugal - Tarde Modesta

Sem tempo para revisões de forma (ou reformas).


Dia de Portugal  - Tarde Modesta

Sentada à mesa farta de cor e farta de falar
Está Sofia, mulher de Baltazar e mulher só.
Farta de cantar ao pó e de contar migalhas,
Pensa da vida como de um conjunto de acendalhas
Demasiado frouxas para lhe dar um qualquer lume.

Sofia subiria até ao mais baixinho cume se as costas não doessem,
Se a vida fosse difícil mas não verdadeiramente insuportável,
Fosse o ar respirável e os seus pulmões inflassem de alegria
E não de lágrimas ante cada tareia e cada dia
Em que sente que, em verdade, a vida é muita areia
Numa praia a que se não conhece o fim ou o fundo.
Sofia gosta do mundo mas gostava mais do mar.
Gosta de ver, de observar mas já não gosta de fazer.
Está gasta de fazer, e Baltazar a faz ver que ser mulher
É eternamente cair e eternamente estar doente.
Eternamente sentir-se de tarde na vida
E saber que se chega sempre tarde ante o telefone que toca,
O arroz que queima, o filho que chora ou o pai que morre.

Sofia viveria numa toca se essa toca se chamasse “outra vida”.
Assim, vive só em Portugal.
Perdida, modesta e desmilinguida.
De galochas fortes mas com a água até ao peito

No pantanal.
Rafael Cardoso Oliveira

quinta-feira, 10 de março de 2016

D'amor irreal

Sem grandes revisões nem meta linguística (por sugestão de substituição de "metalinguística"): isto.

De’amor irreal

O meu amor tem os dois pés no chão
E o coração cheio de senãos,
Ou uns senãos cheios de coração.
É livre como as aves agrilhoadas
E tem a tendência a dar as mesmas voltas
Que elas,
Ainda que só em gaiolas imaginadas,
Dão.

O meu amor sabe medir os meus nadas
E mentir os meus dias para dizer que são bons.
Pinta, com deleite tangível e com todos os tons,
Os céus cinzentos das manhãs iguais.
Sabe-me as manhas e saboreia-me as mamas
Com toda a sua devoção espiritual
E o mesmo sentido de dever carnal.

O meu amor não se cala um segundo em mim,
E qualquer segundo amor que eu tenha,
Sendo ou não sendo seu, ele partilha.
Fervilha, doente, a cada crepitar da nossa lenha
E é por isso que cada amor dele
É coisa minha.
A nossa coisa é termo-nos nos termos
Em que as pessoas teimam em não se ter.

O meu amor sabe amar-me quando eu não sei viver.
E junta aos meus copos a mais o seu esplendor e raça
Teatrais.
Naturais ondas do nosso oceano de compreensão
Em que há barcos a naufragar e a chegar na mesma proporção
Das mortes e beijos de regresso do mundo real.

Por isso amo o meu amor assim:
Às vezes carnal e secamente,
Outras vezes só co'a mente,
E ainda outras vezes
É só ele que gosta de mim.

Rafael Cardoso Oliveira