quinta-feira, 26 de junho de 2008

Perto

Sem muito a dizer. Mais um poema:

Perto

Não sentes uma música no fundo dos ouvidos,
Um torpor leve dos sentidos como que letargia
Fatal de um sono breve? Ouves, por certo, cânticos batidos,
Hinos a patriotas subidos e a vilões sem escrúpulos,
Os primeiros longe, os outros demasiado perto.

Há um cheiro carmesim, um cheiro fétido e antinatural,
Que, a mim, me queda desperto. E a ti? Não te diz nada?
Parece fedor de mortal morto que coberto vem de visceral
Liquido acre e frio e de uma pasta de verde vomitada.

Consegues ver? Sinto os meus olhos selados. E os teus?
De quantas maravilhas te deu Deus não era a que mais prezavas?
Os olhos com que olhando não olhavas, nem perscrutavas
Nada.

A boca seca que tens, de quem não entende a língua que fala,
Parece vazia hoje, ao contrário de cada dia em que se enchia
Das comidas do mundo e das maiores imundícies e baboseiras
Que, vomitante, dizia, (agora cala), cobrindo coisas verdadeiras
De uma doença qualquer, uma atrofia.

Tacteio o teu corpo e o sinto todo vulgar,
Cada pedaço meio desfeito mas tudo no seu lugar,
Tudo por ordem, tudo ajustado na milimétrica escala
Da podridão que assedia e empalha e empala
Todos quantos se dão a este gentil vivenciar!
É teu o som amaldiçoado!
É teu o cheiro apodrecido!
São teus os olhos externos!
É tua a boca vazia!
São minhas as mãos e tua vida em que nada ia!

Sê bem-vindo à Porta dos Infernos!

Rafael Cardoso Oliveira


Citação profunda:
"Diabo: Que cousa tão preciosa...
Entrai, padre reverendo!

Frade: Pera onde levais gente?

Diabo: Pera aquele fogo ardente
que nom temestes vivendo.

Frade: Juro a Deos que nom t'entendo
E este hábito no me vale?

Diabo: Gentil padre mundanal
A Berzabu vos encomendo."
Auto da Barca do Inferno, Gil Vicente


Citação só de memória não querendo com isso os louros de uma memória boa mas sim os descontos, de parte dos caríssimos leitores, por qualquer erro (à data do post isto era verdade, agora só é mentira porque já conferi e corrigi todos os erros, que eram só 2). Digam o que vos aprouver e reclamem o que entenderem.