sábado, 27 de dezembro de 2014

Exemplares

Sem muitas explicações que sejam alusivas a isto, à vida disto, ou ao momento "Dickens", que poderá aparentar pairar sobre a cabeça do sujeito poético, oremos.

Exemplares

Há poemas que leio de vez em quando.
Outros que lembro de quando em vez.
Mas há alguns que vêm mesmo ter comigo,
Ainda que me esconda.
Ainda que sejam três da manhã,
E tenha muito sono ou então muito café bebido.
Dou conta de que, a todos, já tinha lido
Mas que necessito sempre de uma segunda luz.

“Maria Amélia vai, lindamente assobiando,
Limpando pratas que não são dela, Maria.
Amélia, abençoada como a luz do dia,
Crocitaria, se fosse ave menos luzidia…
Mas canta só, qual rouxinol, que ainda não sabe
As mentiras que conta o menino António.
E, se o lacre brasonado não tem forma de demónio,
É só porque fica mal para os de fora.
O mereceria a crueldade e rudeza bem ocultadas
Por entre os molhos de rendas, pratas e pilhas de almofadas
Que Amélia vai limpando, de ignorante.

Todos sabem a que se dão as almofadas:
Ou a lutas de crianças enfadadas
Ou a tiros que, em silêncio, se querem dar.

Seu irmão Alberto,
(de Amélia, patrão,
De António, vago familiar)
É tão certo ser tão pouco certo
Como o brasão os faz a todos, por exemplar.
Gente ruim, mas que, em jeitos de ocultada,
Parece boa gente, parece crente e ajuizada
Mas só quando se olha de fora.”


“António Augusto não lida bem com citações.
Vive uma vida, agora, cheia de repelões e raspanetes…
E esquece sempre se são nabos ou rabanetes
Que lhe pediu a mulher, quando ainda lho confia.
Maldito homem que já não sabe sequer o dia,
Já não sabe que prosa quer, quando só escreve poesia.
E assim definha, e morre, e nem arde sequer
Que para arder há que ter, ao menos, combustível…
António Augusto é a fagulha indizível do que foi um dia.
Hoje é um ideal quando um dia foi um mote,
Hoje é um galope trôpego, do que um dia foi um bonito trote.
Maldita vida que (o) levou, tão exemplar.
E agora o poema dele não pode continuar.”


“O pequeno Pedro continua fitando a rua,
E sabe que passa o camião dos gelados,
Mas só daí a duas horas.
Pouco importa. Pedro é dado a estas demoras,
Porque gosta, também ele, de se demorar.
Gosta de cantar com o mestre Fernando lá da rua,
E gosta das canções do seu país…
“Pátria de indescritível sensação, outrora” dizem todos
E o petiz desanima e pensa que não sabe que hora foi,
Se é que Hora houve.
Gosta das canções do seu país mas mais da sua,
Porque sabe que ainda não vai condenada -
Qual velha que se atira do penhasco exasperada
Porque ninguém lhe elogia os cachecóis
Que tanto trabalho a fiar dão.

“País antigo, exemplar, de sensação!” – Pedro ouve sempre…
E sempre repara que nisto há um misto de verdade
E de aldrabice… Menino sereno, que na sua meninice,
Nem sabe mas há-de compor a Pátria nova.
Que brilhe e que ecoe e que vá onde tem de ir.
Por isso Pedro é só, mas a sorrir.”

E são assim os poemas que me vêm ter,
Batem-me à porta um dia ou outro,
De quando em vez, de vez num quando.
E eu, pai infeliz, tenho de os sempre receber,
Que os dei ao mundo, mas neles já não mando.
E, entre a mulher que limpa tudo mas não sabe
Quão profunda é a sujeira que lhe resta,
O velho esquecido que esqueceu sua bandeira
(ainda que fosse só poesia – que não presta),
E o menino que há-de parir Portugal,
Raia o meu dia. Acorda o mundo, mundanal.
São horas de ir:

Entalo a pistola no meu cinto
E, com uma almofada, das mais velhas, numa mão.
Digo que sou ladrão
Ou que, ao menos, poeta não sou.
E minto.
E vou.

Rafael Cardoso Oliveira


"Why do you doubt your senses?"
"Because," said Scrooge," a little thing affects them. A slight disorder of the stomach makes them cheat. You may be an undigested bit of beef, a blot of mustard, a crumb of cheese, a fragment of an underdone potato. There's more of gravy than of grave about you, whatever you are!"
Enbenezer Scrooge in "A Christmas Carol", Charles Dickens