quinta-feira, 18 de junho de 2015

Oferta

Porque nem todos temos de rimar ao fim.


Oferta

Dou-te trinta motivos para chorar,
Cento e quarenta e duas cartas de amor e de penúria,
Um jarro de minha avó sem flores,
E minha boca inteira com luxúria
Beijando-te a fronte treze vezes.
Dou-te um sorriso fresco mas fingido,
Um riso fraco mas florido
Das sete flores que o jarro ora teria.
Dou-te três grinaldas que façam soar a cotovia
E a sensação de meia vitória de um dia vulgar.
Dou-te vinte e oito batimentos mais do que o normal
E a natural sensação de enfartamento
Dos apaixonados sem sentido ou sentimento…
Dou-te um beijo perto do ouvido que te arrepie
E ensurdeça durante um único segundo
Nesse momento, prometerei: vou dar-te o mundo.
Dou-te a minha esfera armilar para brincares
E os meus sete castelos, todos para os usares
Cada um num dia diferente.
Dou-te esta rua toda cheia de tanta, tanta gente
E o planalto ao fundo sem ninguém.
Dou-te a valentia de meu pai e a maresia de minha mãe
E a indecência das trezentas e sessenta e duas palavras deste poema.
Dou-te a minha vontade nos dias quebrados e este problema
Que é levantar do chão esta poesia.
Dou-te trinta canções de amor e mais daria
Se mais canções houvesse tão bonitas.
Dou-te os meus dez dedos e as horas aflitas em que param
E que duram a vida toda quando duram.
Dou-te quatorze pistolas que não disparam
Senão bandeiras, mentiras, disparates,
E os dois anéis que comprei com o dinheiro dos biscates
Que, sendo tolo, fiz por ti.
E, no meio das palavras, dou-te cem espaços, cem nadas
Para preencheres com os teus passos e as ousadas
Curvas que o teu corpo dá de madrugada.
Dou-te uma respiração soluçada, mas sincera,
E que são todas as esperas em que me sento e te olho só.
Dou-te tudo o que há de bom nesta Primavera
E o que há de menos bom no meu coração…
Os trinta motivos maus do meu coração.
E esperamos, juntos, que chegue o Verão.
Assim espero.
Porque te ofereço tudo o que demais tenho
As tantas, tantas coisas que mais quero
Mas que não são o que eu quero mais.


Rafael Cardoso Oliveira

quarta-feira, 17 de junho de 2015

Curta carta

Slowly but surely.


Curta carta

Às vezes, atiras-me esse olhar estragado...
Que cheira a café e a molhado,
Que cheira a doce longe e a maresia demais
Mas que jamais vem cheirando a poesia.
E me olhas com esse olhar desmaiado
Entre tantos outros olhares que podias ter escolhido.
E eu, na rua onde vou sozinho e ensimesmado,
Digo que não gostas de mim.

Às vezes, atiro-te este sorriso idiota…
Que cheira a café e a molhado,
Que merece, sem dúvida tua, ser alvo de chacota,
Mas que vem embrulhado em poesia.
Não são bons versos nem bonitos,
Mas são aqueles que são ditos
Na ridícula vergonha que tenho de escrevê-los.
E te olho, pois são só para ti e só tu podes tê-los
Entre tantos outros que podia ter escolhido,
Entre tantas outras mulheres a quem escrevi…
E, na rua onde vou sozinho e ensimesmado,
Digo que gosto de ti.

Rafael Cardoso Oliveira

sexta-feira, 12 de junho de 2015

Investida

Mais um. Mais uma vez.


Investida (ou o do perdão poético)

Perdão, nossos pais, se nos desviámos do caminho…
Se perdemos o rumo da poesia porque a olhamos demasiado perto
E isso nos queimou a retina e a rotina.
Isso ou todo o vinho tinto, ou tonto, por certo,
Que bebemos insaciavelmente para digerir o torpor da mente,
Para dirigir as palavras como a espada certa que são,
Para tirar o normal tremor do mundo.
Por isto, pedimos perdão.

O homem fecundo na mente e coração é uma besta aborrecida
Que cuida ver melhor tudo o que é vida
Por achar que, para ver as estrelas,
Terá sempre de esquecer o chão.
O deixar o chão é afirmar a matéria e razão que ele é.
O ignorá-lo e esquecê-lo é dar a cosmos a sensação
De que somos tão importantes como o chão.
E não.
Não somos, não.

Nenhum homem vale o chão que pisa ou corre,
A ideia que na mente lhe grassa,
O filho que no ventre lhe morre,
Nenhum poeta vale um verso inteiro
E nenhuma bala aponta certa ao coração.
Nem todas as maçãs são gravidade
E nem todas as musas são verdade.
Nem toda a poesia é torta e só sem luz
E nem toda a porta se abre sempre para Jesus.
Nem todos gostamos de alcaçuz,
Alguns apenas mesmo de Jesus…
Doce por doce, ou mal por mal,
Venha o diabo e escolha,
Deste mundo mundanal, a salvação.
Por isto, pedimos igual perdão.

Perdoem-nos, nossos pais, nossa poesia inquieta.
Esta miopia de quem vê a um palmo das estrelas
E tem de semicerrar os olhos para não cegar.
Perdoem o querer ser demais sem ser muito mais.
O querer usar as palavras todas quando poucas são precisas.
O gritar e chorar por tantas musas indecisas
Quando bastava chamar por nossa mãe.
Perdoem a nossa arrogância tão bem disfarçada
Entre palavras bonitas e que, tanta vez, não dizem nada.
Também a petulância de vos lermos demasiadas vezes
E, nos entremezes da nossa escrita, vos esquecermos.
Tudo enquanto nos latejam na cabeça
E nos pesam na mão.
Por isto, pedimos mais perdão.

E, no entanto, pesando a pena e o nosso jugo nos cangotes
Saímos neste papel inteiro vociferando vossos motes
Que são os nossos,
Que a pátria nos é igual, por madre nossa.
Portugal, que és pai e mãe de tantos párias,
Ergue-te e ouve também estas lendárias
Palavras de quem já não sabe ser feliz sem poesia!
Que não são meus, nem nossos, nem de ninguém estes sentidos!
E hão de sussurrar mil bocas em todos os ouvidos
Até que a terra inteira se consuma:
O melhor dos filhos é a sua revolta de inocentes!
A sua vontade velha de fazer a coisa nova!
De rodar as rodas à engrenagem e queimá-la se não presta
E de, todo o dia, fazer poesia melhor que esta.

Nenhum poeta vale um verso inteiro
E há versos que hão de valer minha vida.
E há dias, e não poucos são, que morreria só por um.
Por saber disto e, meus pais, vos dever isto
Perdão,
Mas não peço perdão algum.


Rafael Cardoso Oliveira
Ite, missa est