terça-feira, 5 de agosto de 2014

Para hoje

"Comme des soleils crachés
Dans le son déchiré
D`un accordéon rance"

Para hoje

Para hoje reservei-te uma canção.
Um trauteio qualquer, um pedaço de mim.
A salvação que não atinjo ao ver-te assim
Distante, caminhando errante,
Dando aos passos o mesmo que destino
Que seria dar-lhes destino nenhum;
Rumo a um clarão azul e carmim
Que nenhum homem vê, porque não existe.
Estás tu aí longe e eu aqui triste.

Estou em poucos modos, com a barba por fazer,
Com quatro livros por ler e um já meio lido, meio esquecido.
Terei de recomeçar.
Recomeçar tudo para olhar de novo as mesmas palavras,
Não do livro, mas do que escrevo e quero dizer.
Terei de andar…
De novo e uma vez mais por esta terra enlameada
Que, da ferrugem que dos homens cai de fronte suada,
Não faz valer nada, e paga pouco a quem lhe diz
“Mulher, pátria, mãe ou meretriz
Quem és tu, que me pariste neste fim de tempo?”

Canção dos filhos jogados ao vento,
Salvos apenas na sensação e na vontade de este,
Este mesmo poema de destruição
Ser o poema do hoje

Hoje tudo se poderia curar e ferver e iridescer
Hoje todo o meu afazer é poesia!
Não há nada que me tire daqui!
Nada me tira nem me impede
De escrever a este país de bardos, que mal se mede,
O quanto de sua medida esqueceu.
Portugal dos pequeninos…
Que hoje arde entre os bardinos
E as bandarilhas e as bandeirolas
E os artistas e os artolas e toda aquela fruta,
Que nenhuma metamorfose das musas
Nem vistas agudas ou obtusas,
Fará menos filha da puta.

Porque as palavras de hoje são para se usarem todas
Até que o sarro lhes coma a articulação
E a genica dos sentidos.
Hoje gasto todos os olhos e os ouvidos e o poema não tem fim.
Vai rente à corrente sem marinheiros
Vai puxando a refrega e batendo nos pandeiros,
Vai batendo sempre contra as rochas,
Vai acendendo nos mineiros as mesmas tochas
Que permitem que se mine mais fundo.

Hoje o poema vai sempre em frente
E as velhas são todas salvas
E o ontem das mortes saltadas
É o hoje das mortes sentidas.

Portugal, estou farto de te cantar.
Estou imensamente farto de que não gostes de mim.
“Mulher, mãe, diabo, fera, musa, besta,
Pátria de negrume ou meretriz…
Quem és tu, se és meu país?”
Rafael Cardoso Oliveira

"Se não mudar o barco bate no rochedo, e vai no fundo como um brinquedo."