Sem mais de momento. Para os pacientes:
Libertação ou o poema catártico das catatuas catatónicas
Voam, sobre mim, duas catatuas catatónicas.
São duas.
Não convirá serem mais que duas, para fins de poesia.
São brancas e bonitas, de cristas amareladas
Ricas e educadas.
Pairam, mas estão aflitas por ir embora.
Esbracejariam, se braços tivessem.
Vociferariam, se eu lhes desse uma voz.
Mas não dou. Este poema é meu
E vai só aonde eu lhe permitir.
Voam, sobre mim, duas catatuas catatónicas.
São três.
Três da manhã, entenda-se, o surrealismo tem o revés
De não poder trocar os pés pelas mães.
Pelo menos não sem avisar.
Não! A não ser para deixar de calças na mão o incauto
leitor
Que, contando ler o que é normal e real,
Esqueceu que este poema é meu
E só vai aonde eu lhe permitir.
Voam, sobre mim, duas catatuas catatónicas.
São parte importante deste poema catártico.
E, se me fartar delas, pelo bem do clímax dramático,
Hão de sair com o estrondo de um canhão
E deixar, em seu lugar, minha nação.
Toda florida. Toda sorrindo.
Toda uma ilusão…
Toda cheia de belezas, num poema de incertezas.
Mas ainda voam, sobre mim, duas catatuas catatónicas,
Cativas neste cativeiro cruel, e de um calhorda,
À espera que se delas faça açorda
Ou que delas não se faça nada!
Que voem neste seu voo de coisa paralisada
Que o leitor as imagine como minha coroa dourada,
Minha beleza criada só para enfeitar,
Meu bocado de poesia endiabrada,
Minhas palavras que puxam a imaginação.
E hão de rodar sobre mim! Rodarão como as hélices e os
moinhos.
Hão de viver aqui até eu deixar azedar todos os vinhos
Que criarei só para manter e embriaguez desta poesia.
Hão de deixar a vida e continuar voando mortas
Presas como marionetas, como coisas tortas que serão,
Como dois seres estropiados e escangalhados
Só por terem vivido tempo demais neste papel
Ou sem haver qualquer razão.
E eu, dono cruel, continuarei nesta limpeza
De mim.
Usarei as palavras que não têm outro fim,
E que às vezes guardo só por inútil avareza.
Usarei da mesma destreza que usei
Para prender duas aves tão inocentes,
Para prender também as mentes
Num poema sem razões,
Sem coerência,
Sem interpretações que, morrendo eu,
Lhe darão mil cabeças que não a minha.
Este poema é meu e não da minha vizinha,
Não do meu tio, não do meu pai ou de minha mãe
E nem de meu irmão é. Sem todos eles passa bem.
E vai só aonde eu lhe permitir.
Este poema é meu, e vai só aonde eu lhe permitir.
Este poema sou eu, e vou, só, aonde me permitir.
Este poema é meu, apesar de a poesia não ser.
Este poema ainda vai estar cá quando eu morrer.
Este poema não tem catatuas porque eu já não quero!
Como infante infeliz, como um príncipe austero
Que manda só porque gosta de mandar.
E, por tudo isto, por ser demasiado livre,
Tem este poema de acabar.
Tenho, neste poema, de acabar.
Por ser meu, por ser eu, por existir
E ir, só, aonde eu me permitir.
Vou findando. Vou fundando. Vou voar.
Rafael Cardoso Oliveira
sem citações