segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

Amantes (ou o das mordidas que escolhemos)


Aguça-me os olhos como o lápis
Que pinta e ponteia o teu mundo,
Adoça-me os lábios com terra
E mandioca fria.
Tolhe-me os males das mãos por cortesia
E os calos dos pés por incerteza.
Questiona-me - com questiúnculas -
A minha rudeza feroz
E geme
Sempre que tiveres de dizer adeus.
Treme sempre que nos amarmos
Mais que a deus
(Que, a correr bem, será todos os dias.).
Afia-me como afias a espada da língua
Em meus ouvidos encerados,
Cheios de recados que não recordaria
Se não fosse o meu amor por ti.

Cala-me a boca só com beijos
E nomeia comigo todos os percevejos
Da nossa cama mortal.
O Ícaro, o Sísifo, o Homero e o teatral
Álvaro. O Campos, o Ernesto e o honesto
Hélder. E também Jobim Júnior (ou o Segundo).
Perfeitos percevejos do nosso mundo
Que é mundo de desejos
Como de lâmpadas fundidas.
Descansadas, como nós, entre duas vidas
Que são o estar fundido e o ser trocado.

Tu, e só tu, que és meu mundo escarlate às escondidas,
Dá-me a coragem de rejeitar-te nas horas mais apetecidas
Só para te ter quando te aborrece e também a mim.
Como amigos distantes que a distância enfim
Junta, julga, joga, ginga, gere e mata
Numa geringonça que só dá tiros pela culatra
E que é a ópera em que o nosso amor opera.
Ópera de operário, sem luzes e sem porquês,
Que encheu a sala só na vez que vês agora,
De Alcides, Franco, Roberta, Hemingway, Natalie e Saramago
As pulgas amargas que, juntos, deitámos fora.


Rafael Cardoso Oliveira