segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

Às três pancadas


De poemas em frente está toda a gente
Cansada.
Às três pancadas escritos constantemente;
Às três pancadas batendo em retirada;
Às três pancadas, na peça teatral da vida,
Dizendo lugubremente a sua linha ensaiada.
Às três pancadas: tudo.
Às três pancadas: nada,
Que nem tudo o que não nada,
Flutua para evitar morrer.

Às três pancadas abrimos a porta à morte
E com umas pancadas mais fechamos o caixão.
Nosso caixão e de todos os demais.
Puxando, se por dentro,
Ou de empurrão, se por fora vamos
Ou se por fora vão
As nossas mãos e as nossas intenções.

Às três pancadas declaramos amar,
E usamos de mais umas quantas para reforçar o amor.
Ignoramos as do peito, que o coração não bate nunca,
A não ser por três pancadas a mais de quando em vez.
Damos umas pancadas e umas bofetadas – também duas ou três –
Quando os reveses da vida são melhores que nós
E quando a voz se cansa de bater nos três cantos
Que geralmente têm os nossos dias,
As nossas salas e as cidades que habituamos.

Habituamos as coisas que habitamos
Às três pancadas.
Cumprimos os cumprimentos e os comprimentos
De mãos dadas com a indiferença da repetição.
E, medíssemos menos ou cumpríssemos menos,
Todo mundo perderia esta aleatória relação
De ser vivo e velho só porque se deixou aqui chegar.

De três em três pancadas temos fome e morre uma criança.
De três em três pancadas lembramos que temos um nariz que sempre vemos.
De três em três pedradas sentimos o ar que nos infla e desinfla todo o dia.
E de três em três pancadas nos lembramos porque odiamos poesia.
Porque está em nós a regra de deixar o mundo ir
Abater-se sobre os seus joelhos e rezar a um deus qualquer,
E a poesia não deixa isso. Não nos deixa a isso.
De três em três pancadas atraiçoamos a nossa dieta
E comemos broa abjecta com o pior chouriço
Enquanto, às três pancadas recordamos
Que a vida são três trancadas
No cu duro do mundo.


E cremos - porque precisamos - neste desfile de ignomínia e idiotia,
Que são como o sal do pão e a verdura de cada dia,
Fazendo bem e mal às três pancadas que somos
Ratos feitores do mais adorado raticida.
E assim vamos decidida e indizivelmente em frente,
De três passos em três,
Vendo eu o que tu não vês e incapaz de te compreender.
Vendendo, eu, o que tu não sabes negar nem aceitar.
Poetizando umas ideias para perder tempo e dinheiro,
E repetindo prosa fraca que nos finja iluminar
Enquanto cai da mesma cinza no mesmíssimo cinzeiro.
Para chegarmos a ver que o teu novo é o meu velho
Na roda da fortuna, que só tem um algarismo.
E enquanto Atlas empina o mundo num joelho
Saltamos todos, voamos todos, do mesmo abismo.

(Valha-nos tal colossal malabarismo)
Rafael Cardoso Oliveira



domingo, 13 de dezembro de 2015

Ode das Ostras

Tenho em mente um prato de quimeras,
Ou tenho, em minha frente, um desafio.
Um desatino qualquer, um dia sombrio,
Mas mais sombrio do que a sombra mais merece.
Tenho, ante mim, a mente sobre um prato de quimeras
E todas as esperas que esse prato me oferece.

Tenho, nele e dele, todas as minhas relutâncias
E as minhas ânsias gastas de ignorante.
Os meus dias de amante menos fulguroso.
Tenho deste prato um medo pavoroso
E uma vontade langue de lhe saber os sentidos.

É um prato cheio de ostras imaginadas, entenda-se.
Ou mesmo de ostras normais, se ajudar à poesia.
O afrodisíaco – dizem - que até ao mais frio homem aquecia,
E para a mais fria mulher fria era eficaz como soía.
Só aos poetas esta sensação não dá em nada.

Como ostras com a mesma pena pousada dos dias todos,
E o sol e os modos que costumo ter ainda cá estão.
Como ostras sabendo de antemão o que fariam
Mas sentido sempre que nunca, nunca hoje o farão.
Produto risível de um qualquer charlatão
Que me enganou e prometeu cura mais que certa
Para esta mente deserta com um prato cheio
De um bivalve simples - daqueles de abrir a meio –
Para lhe sorver a suculenta carne divinatória.

Uma carne para iluminar a oratória e as moratórias demoradas,
Para encarnar e criar ainda mais fadas
Que iluminem a minha escrita cada dia mais desfalecida.
Só podem ser estas umas quantas ostras estragadas,
Que não surtem efeito nenhum na minha vida.
Continuo murcho e estático, e longe poeta ineficaz.
Olhando o clarão lilás e dizendo que é bonito, sim senhor!
Mas sem mais que diga,
Sem um único clamor mais, 
Sem uma única linha que dure amanhã.

Talvez haja nadas que valham isto,
Talvez este seja o espoletar da poesia.
Amanhã há mais um dia que,
Com a sorte que venho tendo,
Será um outro dia qualquer.
(Vamos indo, vimos vendo)
Comendo ostras como quem come umas torradas,
Insistindo em rimas sinistras e erradas
Quando eu não gosto de ostras sequer.

Rafael Cardoso Oliveira


segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Entre eu e tu

Sem queixas nem desculpas.


Entre eu e tu

Entre nós dois há a espada presa por um fio
De teus cabelos, que confio ser um fio forte.
Entre eu e tu há um mar, que é o desafio 
Por mentir entre indicar o sul e o norte.

Entre nós dois há a imensidão silenciosa
Que é só silêncio – ele mesmo – assim pousado
Como se por uma moça indecorosa,
Que sabe tão mais de poesia que de prosa
Que abusa dele mesmo estando ele calado.

Entre eu e tu há um nós que é uma parede.
Há esta rede, a trama, a teia; o sermos sós.
Entre nós dois há a mesma fome e a mesma sede,
E grita, internamente, a mesma voz.
Giramos, em eixos iguais, assim opostos,
Quais dois bonecos, manipansos sem justiça,
Que, num qualquer castelo de brincar
São de girar sempre e sempre nos seus postos.
Rodando em sua real grandeza de cortiça,
De metal, de madeira, de “tanto faz”,
Temos o azar da descoordenação por condição
E deste trocar o nosso olhar sempre fugaz.
Cada um roda na sua direcção,
Cada um olha o seu coração a nu.

Cai a espada e rasga o poema, e a minha mão
Sangra por escrever sobre eu e tu.


Rafael Cardoso Oliveira

quinta-feira, 30 de julho de 2015

Espantalho Canalha

Às vezes, atribuímos um defensor mesmo aos campos onde não cresce coisa alguma.


Espantalho Canalha

Nos dias em que tenho sono e frio
E arreganho, ainda assim, os dentes
No sorriso mais fraco e mais sombrio
Que o dia me merece,
Tenho pena, mas sei que acontece,
De te atirar o meu espantalho canalha.

O das horas gastas a escrever sem sentido,
O do medo que tenho de não ser lido,
O da falta de paciência para ver o dia gasto,
O da violência que é perceber-me que me basto
Quando sempre achei que jamais me bastaria.

É triste atirar-te este espantalho canalha.
Melhor tivesse e melhor atiraria.

É um boneco velho e com pouca palha e, essa, fraca.
Está permanentemente de ressaca e não sabe beber vinho.
Cheira mal e não espanta um estorninho mais valente.
Não tem frio mas também não sabe ser quente
E, sobretudo, não tem sobretudo nenhum.

É o boneco ciente do meu dia igual todos os dias
E é uma maneira diferente de espantar as melodias
E as quimeras voadoras nas quais não quero pensar.

É triste atirar-te este espantalho canalha.
Só o faço para não me chatear.

E se te melindrar no processo, pouco importa.
Coloco um outro espantalho a bater à tua porta
Com um ramo de flores vulgar e palavras piores ainda.
Um que te implore um perdão indiferente
E que se finja de doente sem te ter.
Que suba e te beije a fronte empedernida
E que te chore por vida, quando a dele falta, claramente.

É triste atirar-te este espantalho canalha.
Mais triste é fazê-lo nova e novamente.

Pior é saber de forma tão vincada
Que mesmo este poema vale nada
E que é, ele mesmo, esse espantalho.
Uma poesia nua e empatada.
Palavras como uma papa enlatada e fria
Que eu não serviria ao pior cão que me tivesse.

E só tenho mesmo este espantalho.
Que tal parece?

E aqui fica: espetado e espantado por servir;
A julgar todos os versos que ninguém vai repetir;
E a olhar o meu campo árido de ideias e ideais.
Aponta - braços abertos - dois quaisquer pontos cardeais
E os destinos incertos que não consegue olhar.
Espera eternamente o teu abraço que o conforte
Ou um feiticeiro que lhe dê a morte,
Ou o dia mais feliz da minha vida,
Ou um pássaro que lhe prometa amizade.

É triste atirar-te este espantalho canalha…
Mas é que dói sempre menos que a verdade.

Rafael Cardoso Oliveira

quinta-feira, 18 de junho de 2015

Oferta

Porque nem todos temos de rimar ao fim.


Oferta

Dou-te trinta motivos para chorar,
Cento e quarenta e duas cartas de amor e de penúria,
Um jarro de minha avó sem flores,
E minha boca inteira com luxúria
Beijando-te a fronte treze vezes.
Dou-te um sorriso fresco mas fingido,
Um riso fraco mas florido
Das sete flores que o jarro ora teria.
Dou-te três grinaldas que façam soar a cotovia
E a sensação de meia vitória de um dia vulgar.
Dou-te vinte e oito batimentos mais do que o normal
E a natural sensação de enfartamento
Dos apaixonados sem sentido ou sentimento…
Dou-te um beijo perto do ouvido que te arrepie
E ensurdeça durante um único segundo
Nesse momento, prometerei: vou dar-te o mundo.
Dou-te a minha esfera armilar para brincares
E os meus sete castelos, todos para os usares
Cada um num dia diferente.
Dou-te esta rua toda cheia de tanta, tanta gente
E o planalto ao fundo sem ninguém.
Dou-te a valentia de meu pai e a maresia de minha mãe
E a indecência das trezentas e sessenta e duas palavras deste poema.
Dou-te a minha vontade nos dias quebrados e este problema
Que é levantar do chão esta poesia.
Dou-te trinta canções de amor e mais daria
Se mais canções houvesse tão bonitas.
Dou-te os meus dez dedos e as horas aflitas em que param
E que duram a vida toda quando duram.
Dou-te quatorze pistolas que não disparam
Senão bandeiras, mentiras, disparates,
E os dois anéis que comprei com o dinheiro dos biscates
Que, sendo tolo, fiz por ti.
E, no meio das palavras, dou-te cem espaços, cem nadas
Para preencheres com os teus passos e as ousadas
Curvas que o teu corpo dá de madrugada.
Dou-te uma respiração soluçada, mas sincera,
E que são todas as esperas em que me sento e te olho só.
Dou-te tudo o que há de bom nesta Primavera
E o que há de menos bom no meu coração…
Os trinta motivos maus do meu coração.
E esperamos, juntos, que chegue o Verão.
Assim espero.
Porque te ofereço tudo o que demais tenho
As tantas, tantas coisas que mais quero
Mas que não são o que eu quero mais.


Rafael Cardoso Oliveira

quarta-feira, 17 de junho de 2015

Curta carta

Slowly but surely.


Curta carta

Às vezes, atiras-me esse olhar estragado...
Que cheira a café e a molhado,
Que cheira a doce longe e a maresia demais
Mas que jamais vem cheirando a poesia.
E me olhas com esse olhar desmaiado
Entre tantos outros olhares que podias ter escolhido.
E eu, na rua onde vou sozinho e ensimesmado,
Digo que não gostas de mim.

Às vezes, atiro-te este sorriso idiota…
Que cheira a café e a molhado,
Que merece, sem dúvida tua, ser alvo de chacota,
Mas que vem embrulhado em poesia.
Não são bons versos nem bonitos,
Mas são aqueles que são ditos
Na ridícula vergonha que tenho de escrevê-los.
E te olho, pois são só para ti e só tu podes tê-los
Entre tantos outros que podia ter escolhido,
Entre tantas outras mulheres a quem escrevi…
E, na rua onde vou sozinho e ensimesmado,
Digo que gosto de ti.

Rafael Cardoso Oliveira

sexta-feira, 12 de junho de 2015

Investida

Mais um. Mais uma vez.


Investida (ou o do perdão poético)

Perdão, nossos pais, se nos desviámos do caminho…
Se perdemos o rumo da poesia porque a olhamos demasiado perto
E isso nos queimou a retina e a rotina.
Isso ou todo o vinho tinto, ou tonto, por certo,
Que bebemos insaciavelmente para digerir o torpor da mente,
Para dirigir as palavras como a espada certa que são,
Para tirar o normal tremor do mundo.
Por isto, pedimos perdão.

O homem fecundo na mente e coração é uma besta aborrecida
Que cuida ver melhor tudo o que é vida
Por achar que, para ver as estrelas,
Terá sempre de esquecer o chão.
O deixar o chão é afirmar a matéria e razão que ele é.
O ignorá-lo e esquecê-lo é dar a cosmos a sensação
De que somos tão importantes como o chão.
E não.
Não somos, não.

Nenhum homem vale o chão que pisa ou corre,
A ideia que na mente lhe grassa,
O filho que no ventre lhe morre,
Nenhum poeta vale um verso inteiro
E nenhuma bala aponta certa ao coração.
Nem todas as maçãs são gravidade
E nem todas as musas são verdade.
Nem toda a poesia é torta e só sem luz
E nem toda a porta se abre sempre para Jesus.
Nem todos gostamos de alcaçuz,
Alguns apenas mesmo de Jesus…
Doce por doce, ou mal por mal,
Venha o diabo e escolha,
Deste mundo mundanal, a salvação.
Por isto, pedimos igual perdão.

Perdoem-nos, nossos pais, nossa poesia inquieta.
Esta miopia de quem vê a um palmo das estrelas
E tem de semicerrar os olhos para não cegar.
Perdoem o querer ser demais sem ser muito mais.
O querer usar as palavras todas quando poucas são precisas.
O gritar e chorar por tantas musas indecisas
Quando bastava chamar por nossa mãe.
Perdoem a nossa arrogância tão bem disfarçada
Entre palavras bonitas e que, tanta vez, não dizem nada.
Também a petulância de vos lermos demasiadas vezes
E, nos entremezes da nossa escrita, vos esquecermos.
Tudo enquanto nos latejam na cabeça
E nos pesam na mão.
Por isto, pedimos mais perdão.

E, no entanto, pesando a pena e o nosso jugo nos cangotes
Saímos neste papel inteiro vociferando vossos motes
Que são os nossos,
Que a pátria nos é igual, por madre nossa.
Portugal, que és pai e mãe de tantos párias,
Ergue-te e ouve também estas lendárias
Palavras de quem já não sabe ser feliz sem poesia!
Que não são meus, nem nossos, nem de ninguém estes sentidos!
E hão de sussurrar mil bocas em todos os ouvidos
Até que a terra inteira se consuma:
O melhor dos filhos é a sua revolta de inocentes!
A sua vontade velha de fazer a coisa nova!
De rodar as rodas à engrenagem e queimá-la se não presta
E de, todo o dia, fazer poesia melhor que esta.

Nenhum poeta vale um verso inteiro
E há versos que hão de valer minha vida.
E há dias, e não poucos são, que morreria só por um.
Por saber disto e, meus pais, vos dever isto
Perdão,
Mas não peço perdão algum.


Rafael Cardoso Oliveira
Ite, missa est

quarta-feira, 13 de maio de 2015

O das sortes ou Ode às sortes ou Só dás sortes

Porque é sempre difícil voltar à vida disto, deixo só a seguinte mensagem: Seja responsável. Pense com moderação.


O das sortes ou Ode às sortes ou Só dás sortes

As moedas que atiramos ao ar
Caem, invariavelmente, na nossa cabeça.
Ainda que nos aterrem na mão, na algibeira,
No balcão onde a criada velha nos reprova a borracheira
Ou no coração onde, criados velhos, vamos sempre devagar.

São assim as moedas que atiramos ao ar.

Feitas de metal que é só o nosso olhar
A olhar para elas enquanto rodam, coloridas.
Nessa altura não são moedas: são vidas
Que rodopiam e se escusam à razão.
As moedas que lançamos ao ar estão todas na nossa cabeça
E todas caem, com estrondo, no mesmo chão.
Caem na loiça vazia da aspereza do nosso dia,
E não a partem porque fazem mais barulho sem partir.
Todas as moedas vão de sorte e, com sorte,
Todas a hão de voltar e de cair…
Antes (d)a morte.
Antes (de) ir.

As moedas que atiramos ao ar são a nossa expectativa.
São mais que o querer ganhar: são mau perder!
São a nossa presunção de as depositar num ofertório
Da missa de um padre transitório como é a nossa cristandade.
As moedas que lançamos ao ar são todas a verdade,
E todas são o medo que temos de a enfrentar.
“Antes a sorte que tal sorte...” – dizemos e lançamos
Apertamos bem os nós dos dedos e, cegos, fitamos
O que o destino nos tem reservado.
Bruxo de cega sina e mau-olhado,
Pecado só pago no cestinho da missa matutina.

São assim as moedas que atiramos ao ar.

E há os que as apanham no ar, pensando vencer a charada.
Mas as moedas que não chegam ao seu ponto não são nada.
Cada moeda tem o seu destino a cumprir
E, por isso, será uma a decidir
O este poema poder acabar à toa.

Coroa.

Coisa rara:
Cair-me na cara uma coroa.

Rafael Cardoso Oliveira

"São sete da tarde e passa tudo a correr
Alguém vai para casa tratar mal a mulher
Ele acha natural, ela esconde as suas rugas
Aquele ali vai p'rós copos tratar das suas fugas."
Sete, Jorge Palma


domingo, 18 de janeiro de 2015

O poema dominical

Próprio para consumo, e com o relato curto das últimas publicações. Entretenham-se.

O poema dominical

Irmãos,
Naquele tempo - que, até ver, é este - disse Jesus,
Co’a voz pesada e compassada que era de si:
“Nenhum poema há de pregar-se nesta cruz
Nenhum verso há-de morrer aqui.
Preguem-se os homens, as deidades, as ideias,
As cousas feias. Jamais se prenda a luz!
E maldito seja o blasfemo que o negue:
Que os homens o não escutem e deus o pregue!”

E, como hóstia divina aos céus entregue,
Endereçou, o filho pródigo, a maldição:
Aos ouvintes que não sabiam o que falava,
Ao povo que só lhe pedia peixe e pão.
E ignorantes, compuseram, em segredo,
A oração de quem não sabe e, só, tem medo:

“Pai nosso, que não sabemos onde estás,
Santificado seja o vosso nome.
Venha a nós o vosso reino, que o rapaz
Que é vosso filho diz que lá ninguém tem fome.
Seja feita a nossa vontade… (Ou saciada, que é igual)
Antes de morrer e, se puder ser, depois um dia.
E livrai-nos do mal e dai-nos peixe, leite, azeite e sal
Que p’ra comer só há pão nosso de poesia.”

Rafael Cardoso Oliveira

"Senhor, eu não sou digno que entreis em minha morada,

mas não digas nada que eu estou a salvo." - Livro das Invenções

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Catatuas Catatónicas

Sem mais de momento. Para os pacientes:


Libertação ou o poema catártico das catatuas catatónicas

Voam, sobre mim, duas catatuas catatónicas.
São duas.
Não convirá serem mais que duas, para fins de poesia.
São brancas e bonitas, de cristas amareladas
Ricas e educadas.
Pairam, mas estão aflitas por ir embora.
Esbracejariam, se braços tivessem.
Vociferariam, se eu lhes desse uma voz.
Mas não dou. Este poema é meu
E vai só aonde eu lhe permitir.

Voam, sobre mim, duas catatuas catatónicas.
São três.
Três da manhã, entenda-se, o surrealismo tem o revés
De não poder trocar os pés pelas mães.
Pelo menos não sem avisar.
Não! A não ser para deixar de calças na mão o incauto leitor
Que, contando ler o que é normal e real,
Esqueceu que este poema é meu
E só vai aonde eu lhe permitir.

Voam, sobre mim, duas catatuas catatónicas.
São parte importante deste poema catártico.
E, se me fartar delas, pelo bem do clímax dramático,
Hão de sair com o estrondo de um canhão
E deixar, em seu lugar, minha nação.
Toda florida. Toda sorrindo.
Toda uma ilusão…
Toda cheia de belezas, num poema de incertezas.

Mas ainda voam, sobre mim, duas catatuas catatónicas,
Cativas neste cativeiro cruel, e de um calhorda,
À espera que se delas faça açorda
Ou que delas não se faça nada!
Que voem neste seu voo de coisa paralisada
Que o leitor as imagine como minha coroa dourada,
Minha beleza criada só para enfeitar,
Meu bocado de poesia endiabrada,
Minhas palavras que puxam a imaginação.

E hão de rodar sobre mim! Rodarão como as hélices e os moinhos.
Hão de viver aqui até eu deixar azedar todos os vinhos
Que criarei só para manter e embriaguez desta poesia.
Hão de deixar a vida e continuar voando mortas
Presas como marionetas, como coisas tortas que serão,
Como dois seres estropiados e escangalhados
Só por terem vivido tempo demais neste papel
Ou sem haver qualquer razão.


E eu, dono cruel, continuarei nesta limpeza
De mim.
Usarei as palavras que não têm outro fim,
E que às vezes guardo só por inútil avareza.
Usarei da mesma destreza que usei
Para prender duas aves tão inocentes,
Para prender também as mentes
Num poema sem razões,
Sem coerência,
Sem interpretações que, morrendo eu,
Lhe darão mil cabeças que não a minha.
Este poema é meu e não da minha vizinha,
Não do meu tio, não do meu pai ou de minha mãe
E nem de meu irmão é. Sem todos eles passa bem.
E vai só aonde eu lhe permitir.

Este poema é meu, e vai só aonde eu lhe permitir.
Este poema sou eu, e vou, só, aonde me permitir.

Este poema é meu, apesar de a poesia não ser.
Este poema ainda vai estar cá quando eu morrer.
Este poema não tem catatuas porque eu já não quero!
Como infante infeliz, como um príncipe austero
Que manda só porque gosta de mandar.
E, por tudo isto, por ser demasiado livre,
Tem este poema de acabar.
Tenho, neste poema, de acabar.
Por ser meu, por ser eu, por existir
E ir, só, aonde eu me permitir.

Vou findando. Vou fundando. Vou voar.
Rafael Cardoso Oliveira
sem citações

quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

Comunicado

Se fizesse diferença a alguém, dir-se-ia que estamos em 2015. Como a única diferença que faz é no dia que já passou - porque todos o vimos passar -, sigamos, só, em frente.

Comunicado

Hoje, o poeta pediu para informar que está ausente;
Que não há nada de muito premente ou importante
Ou que brilhe mais do que o que é constante,
E que, por tal, valha a pena poetizar.

Assim, vem este pequeno trecho de enfado
Desejar a todos quanto o lêem o bom bocado
De não terem trabalho nenhum.
Este comunicado é bom e acertado
E maldito seja quem nele vir mais do que nele há.
É só um comunicado comum.

Deixou-me, o próprio poeta, ainda, a seguinte mensagem:
“O fogo-de-artifício das palavras está extinto
Para não dar que fazer a quem pensa.”
Em P.S.: Diz ter, sobre a mesa, uma garrafa de vinho tinto
E a vaga sensação de humanidade que, há muito, não tinha.

Ou talvez seja humidade. Lê-se mal a última linha.

Rafael Cardoso Oliveira


"Beauty is truth, truth beauty - that is all
Ye know on earth, and all ye need to know."
John Keats em "Ode on a Grecian Urn"