quarta-feira, 29 de junho de 2016

Acordemos

Acordemos

Hoje acordamos com a dura sensação
De que deveríamos ter acordado mais cedo.
Olhamos o espelho do lado errado e o dia todo trocado
Que não parece ser de sol mas que de chuva não é.
Pomos um pé fora da cama e um telemóvel na mão.
Acendemos a paciência e ignoramos a razão
E ligamos a nossa rede social.
Porque é normal
Haver rede social em solidão.

Acordamos com os olhos fechados, que fechados mantemos,
Ante as fachadas do que vemos e que é melhor não ver.
Concordamos, todos os dias, tacitamente
Em acordar com a nossa gente, não só à mesma hora,
Mas à luz da mesma aurora.
Ao som do mesmo tiro plangente
E tomando exactamente do mesmo pão;
Ou uma malga de vinho que nos esqueça de nós;
Ou um bom copo de aguardente
Para lembrar, não mais que esquecidamente,
Os egrégios avós;
Ou um sermão dominical administrado pela televisão,
Entre duas músicas e uma promoção
De como viver até aos cem
Sem dar por isso;
Ou o aval de alguém, que ninguém é,
Num qualquer local da tal rede social.

Entorpeçam-nos, por favor, rapidamente
Que isto assim não parece Portugal.

Hoje, acordamos com o mesmo compromisso
De manter a cabeça firme na sua posição torta.
De calcetar as ruas sujas, não fazer rebuliço e abrir a porta
À indigência e a ignomínia como irmãs.
E hão-de sentar-se à nossa mesa e comer a nossa carne,
Usar das nossas flores e inventar as nossas cores
Cantar a nossa terra mas mudar-lhe o seu sentido,
Até que o nosso ouvido ache que aquela é a nossa terra.
E, por obrigação imoral de uma Nossa Senhora qualquer,
Devemos, como qualquer homem e qualquer mulher,
Fazer cara serena e dizer que a vida passa bem.
Acordar que “vamos andando”, que sem andar não vai ninguém,
Apesar de não irmos a lado nenhum.
A noite chega e é só hora de dormir, e só nisso acordamos todos.
E desse sono não acorda ninguém,
Nem um.



Procurando-nos entre mil e um engodos, acordamos que tem de ser.
Acordamos que estamos dormindo e que assim já não pode ser.
Vemos que somos mentidos e que nos usam - o que não tem de ser.
Vemos que nos abusam quando estamos calados só para comer
As migalhas do pão de fome que nem o diabo quis amassar
Porque nos importa muito mais acordar do que acordar.
Porque desesperamos por despertar
Mas nos deixamos dormir e ir porque é bom ir e dormir.

Pisam a nossa língua e a vontade de a falar,
Engasgam a nossa escrita e escrevem o poema novo
Com o sangue do mesmo povo que se viu navegar
No mar que tantas vezes se encheu de lágrimas e de nós.
Tantas lutas caladas e tantas querelas sem voz,
Tantos dias iguais e tanta fonte espectral
Jorrando a mesma água parada de morte,
Enquanto, num canto, se canta à sorte:

Entorpeçam-nos, por favor, rapidamente
Que isto assim não parece Portugal.

Doente.
Dormente.
Sem mote.


Rafael Cardoso Oliveira

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